sábado, 16 de outubro de 2010

"o segredo da nova arte, meu bom padre!"



"O pátio do palácio Médicis estava cheio de gente quando Prelado e Blanchet entraram por seu turno. É que acabava de ser aí colocada a última obra de Donatello, o escultor mais célebre desse tempo, e os amadores de arte, os alunos das academias e um grande número de simples curiosos rodeavam e comentavam a estátua recém-saída do molde. Tratava-se de um David de bronze, o David criança que, frágil e fraco, acaba de vencer milagrosamente o gigante filisteu, Golias. Prelado contornara lentamente a estátua e observava agora Blanchet, que enchia de ar as bochechas e encolhia os ombros.
- É então isto, a arte moderna? - resmungava. - Não, realmente, não vejo o que é que... não, realmente...
- Não vedes esta graça um pouco afectada? - perguntou Prelado com uma intensidade onde se fundiam a admiração pela obra de arte e a irritação que nele despertava aquela criatura tão obtusa.
- Não vedes esta atitude deliciosamente amaneirada, provocante, esta inclinação da anca que o pé esquerdo, assente na enorme cabeça cortada de Golias, justifica? E estes dois braços delgados, como as asas frágeis de um vaso, a mão direita segurando a espada e a esquerda, uma pedra? E que estranho trajo, este capacete coroado de louros, estas grevas até aos joelhos, e o rsto do corpo nu?
Mas sabei que em nada disto reside a arte moderna; ela está, isso sim, na presença quase exorbitante da realidade anatómica deste corpo. O rapaz tem os olhos baixos. Olha, possivelmente, o seu próprio umbigo. Ou, pelo menos, o seu rosto sombreado pela viseira do capacete contribui para dirigir para o umbigo as atenções dos espectadores. O que é privilegiado até ao exibicionismo é, nesta estátua, o peito de músculos infantis, mas bem desenhados, o recorte arredondado do tórax, o pequeno ventre redondo e saliente, o sexo pueril abrigado na brandura das coxas. Sim, há como que uma ostentação risonha de todo este corpo sensual e alegre. Nunca a carne estivera a tal ponto presente no bronze.
- É extraordinário - murmurou Blanchet. - Vós falais desta obra ao mesmo tempo como um apaixonado e como um professor de anatomia. Pergunto-me onde está o amador de arte.
- Mas é exactamente esse o segredo da nova arte, meu bom padre! - exclamou Prelado, conduzindo-o para a saída do pátio do palácio Médicis. - Sim, nós abolimos a distância que a contemplação artística necessariamente exige, O que fica, então? Fica: amor mais anatomia. Nós, os toscanos, não somos já pintores nem escultores. Somos apaixonados, amantes... para quem o esqueleto existe. E não apenas o esqueleto: os músculos, as vísceras, as entranhas, as glândulas.
E, virando-se para Blanchet, gritou-lhe aos ouvidos, com uma gargalhada medonha:
- E o sangue, meu bom padre, o sangue!"

Michel Tournier, Gilles e Jean, Lisboa, Publicações Dom Quixote, col. Biblioteca de bolso, trad. Ana Luísa Faria, 1987: 63-64.

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