Autor - Georges Simenon
Título - Carta para minha Mãe
Editora - Edições Cotovia
Trad. - Maria Jorge de Vilar Figueiredo
As cartas são coisas preciosas.
Nunca houve uma carta.
O que é isso, então, uma carta? Cada vez que penso no que uma carta é, no que poderá ser, sobre a minha procura de definição ocorrem, recorrem, concorrem, os nomes dessa palavra noutras línguas, a inglesa “letter”, a francesa “lettre”, a italiana “lettera” ou a basca “letra”, que, em português, poderia muito bem ser traduzida, ou dita, à letra, letra. Não “a” letra, mas uma letra, uma qualquer nunca antes surgida, dita, escrita em todos os alfabetos do mundo, mortos ou vivos, em letra-língua morta ou viva.
Na verdade há uma relação entre lei, letra e carta. Lei ou mandamento, prescrição enviada a ser traduzida e levada à letra; a letra como palavra, corpo a ser soprado, insuflado pelo “pneuma”; a carta, corpo de letras apostas, justapostas, concorrentes, grafadas e enviadas, rua de sentido único, literal, promessa de revelação daquilo que está velado à vista pela distância, no tempo e no espaço. Letra a ser percorrida pelos olhos, ou de coração a coração. A carta promete, é letra de promessa, “vou dando notícias”, “depois, numa outra carta, conto-te como foi”, sem ser bem um futuro que se espera mas que se adia. Melhor, o futuro vem sempre mas o futuro da carta é outro e é da sua lei vir o menos possível, às partes ou a partes meias com o esquecimento, com a memória, mergulhado desde logo na promessa de memória.
Uma carta é tudo menos razoável, pouco há de razão na carta escrita. As cartas de razão – notificações, discussões, diatribes, argumentações, etc. – não são cartas e tudo menos literatura e toda a carta corre o risco de ser assaltada pela literatura, que no fim de contas está sempre à sombra do coração que quer pegar na sua letra e enviar ao outro.
Carta, letra, lei, são promessas, movimento e toque, estando os dois primeiros conceitos intimamente ligados. Como promessa, a carta nunca cumpre a lei que a gera e rege, cumprindo, deste modo, no seu não cumprimento, a promessa. Como promessa a carta fica no limiar de um dizer tudo adiado, proscrito. Não há “a” carta, outras se lhe seguem. Como movimento – e movimento peculiar – a carta joga o jogo do desvelamento-velamento-revelamento. O epistológrafo intenta retirar o véu ao seu mundo, o mundo da sua vida, dando assim a ver o seu “interior”, aquilo que é, aquilo que o faz ser como é. Todavia, à sombra da linguagem à mão a literatura logo mostra a cara e cobre com outra pele o que haveria de ser dito, de novo ocultando com outras roupagens, velando talvez a letra morta, o mundo a ser grafado, revelando outro mundo, travestido. Aquele ou aquela que recebe, por sua vez, mergulha no mesmo jogo pondo lado a lado o seu mundo, onde o outro também habita, e aqueloutro que o/a procura, aqueloutro mundo oferecido a ler. Por fim, o toque, esse desejo e essa técnica, propósito da carta; ao longe, de longe, tocar sem poder na verdade tocar, todo um desejo passado à mão sobre um outro corpo e endereçado ao amigo, à amiga, ao amado, à amada, ao Pai, à Mãe.
Curiosa esta carta/livro de Georges Simenon (1903-1989) à sua Mãe – desta vez não faremos uma apresentação do autor bastamente conhecido, senão pela sua imensa obra de aproximadamente 400 livros, pelo menos pelo seu “Inspector Maigret”, ou simplesmente pelo seu nome. Primeira obra que li do autor, logo me afrontou a memória de um título semelhante mas sexualmente diferente, a célebre “Carta ao Pai” de Franz Kafka. Mas, se na obra do escritor checo a maiúscula e o pronome demonstrativo facilmente potenciam uma leitura alegórica, um certo cariz mítico-religioso da figura do Pai (Deus) autoritário e ausente, para além da primeira camada biográfica que deverá ser sempre a primeira leitura dessa carta; já em Simenon a mesma maiúscula e o possessivo desviam a atenção e a interpretação unicamente para a biografia: «não se vai “falar” de qualquer mãe mas desta aqui, da minha mãe, a única que me gerou, que me viu nascer, me carregou, me alimentou, etc.».
Curiosa esta carta de um filho endereçada a uma mãe morta, a sua mãe morta, que nunca lerá a sua carta – do filho e dela. Escrita de uma forma clara, lúcida, com frases e parágrafos quase sempre curtos, como que tacteados, esta carta não busca ser a inquirição do coração, da vida do seu autor, mas de sua mãe, aquela que por ser tão sua, “minha mãe”, no leito de morte, olhos nos olhos, rosto a rosto, ele desconhece. A promessa, o jogo desvelatório-revelatório (preso aqui no velar da moribunda) e o toque prendem-se ao mistério de uma desconhecida, na procura da ligação que os une. E talvez, o que subjaz a vontade de escrever esta carta seja somente autenticar, tornar verídico o pronome possessivo, fazer com que o “minha” passe da palavra, de pronome, a algo mais. É que a sua mãe, tal como o Pai de Kafka, foi igualmente autoritária, fria, dura, ausente, desligada. Nascida num seio pobre, procurou ao longo da sua vida cumprir a promessa, o voto humilde de pobreza, custasse o que custasse; cumprir uma certa ideia de humildade, de bondade, de um modo que nunca ninguém alguma vez chegou a compreender. Foi preciso Simenon se sentar no silêncio daquele quarto, alimentar o silêncio desse quarto, olhar, perscrutar, inquirir, reduzir tudo a um fio que percorresse cada gesto, cada motivo, atitude, até os ligar, mãe e filho e depois soltá-lo, até ser só dela e escrevê-la. Escrever esta “carta”…
Que é uma coisa preciosa.
E não é uma carta.
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