quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Telhados de Vidro





Título: Telhados de Vidro
Autor: AAVV
Editora: Averno


Desde que me lembro nunca consegui terminar nada. Deixo tudo a “meio”, sendo este meio a metade ilusória de um escrito, de uma ideia, de uma música, por exemplo – os livros contam-se, ao longo destes anos, pelas mãos. Ou seja, chamo-lhe de meio por uma frágil convenção de promessa de retorno. Depois vou revisitando essas coisas deixadas a meio, segredando-lhes o meu regresso a si, tantas vezes já não me reconhecendo nas palavras, nas notas vincadas nos calos dos dedos, nos apontamentos tão preciosos no seu tempo. Mas, de tempos a tempo, também, um desses esboços é completado, terminado. Sou tomado por uma febre burra, teimosa; a doença que se fazia passar por palavras e frases, as notas melodicamente entrelaçadas, conquista o corpo já esquecido, pensado derrotado e sigo a viagem até meio traçada até esgotar o passo, a mão, a cabeça. De tempos a tempos, de tempos a tempos.
Certos vícios ganham-se em criança. Depois, ou são alimentados ou trocam-se por outros. Eu tentei, juro que tentei, tantas vezes, aborrecendo até à exaustão os ouvidos de minha mãe, alimentar os desejos lançados de colecções disto e daquilo. Foram cromos de campeonatos de futebol, de desenhos animados, notas exóticas de países estranhos com outros rostos e paisagens, pedras, cristais, conchas, fósseis, paixões. Eu tentei. Agora, o mais certo será dizer que colecciono promessas não cumpridas, restos – também eles precisam ser recolhidos e guardados, colados.
Hoje, já com uma certa seriedade ao debruçar-me sobre certos assuntos, procuro levar ao fim, até onde fôr possível, a mim e aos editores – porque também eles se cansam, se esgotam, não havendo leitores – pela primeira vez o conjunto de uma revista de poesia e literatura, a “Telhados de Vidro” (TV).
Tomei conhecimento da editora Averno, que publica a TV, através do meu grande amigo Carlos Alberto Machado, onde publicou um dos seus melhores livros de poesia, “Realidade Inclinada”. De imediato me fascinou o arranjo gráfico desses pequenos livros – quer os de autor, quer os da TV; simples, de pequenas dimensões, contemplando no seu rosto sempre, ou quase sempre – não poderei afirmar com uma certeza absoluta pois não possuo todos os livros da editora, somente as revistas – um desenho de um artista plástico ou uma fotografia trabalhada com o esmero de um excelente desenhador gráfico e paginador recentemente falecido, Olímpio Ferreira (essas funções encontram-se correntemente ao cuidado de Pedro Serra). Deste modo, tais como os livros da editora “& etc.” ou da “Frenesi”, cada TV se torna mais do que um objecto literário, uma obra de arte portátil, glosando, pela nossa parte, essa novela de Vila-Matas (“História abreviada da literatura portátil”).
Porque falamos desta editora e revista? Muitas outras há a falar. Obviamente, por erro meu, não persigo, ou não totalmente (deixadas a meio), essas (a “Relâmpago”, a “Callema”, a “Ìtaca”, a “Criatura”, a “Intervalo”, entre tantas outras, perdoem-me não as citar), ao contrário da TV. A TV não é, ou não somente, uma revista temática, ou melhor, o seu tema é a Poesia; não é per se de intervenção cultural, senão pelo modo próprio e peculiar que a Poesia intervém com cada mundo do leitor, como se cruza e se liga com a cultura e à língua; não é política ou tão intensamente política como quando a Poesia trata das questões da polis, da cidade, nos dá a ver/ler as coisas e questões da cidade através da voz de cada participante.
E o que podemos encontrar nesta revista? Para além do que já foi dito enquanto objecto literário aliado ao plástico, cada exemplar (exceptuando o primeiro número com a sua comunicação inaugural, onde se pode ler uma excelente crítica a essa típica asserção de que a “poesia não interessa”, seguindo para a afirmação “não gostamos de editoriais, números temáticos e comemorações subsidiadas pelas entidades competentes” e terminando com uma proposta, por assim dizer, “[A] poesia, que não nos interessa rigorosamente nada, move-nos de quando em quando. Temos de nos distrair da morte e não sabemos bem como. Talvez assim.”) abre com uma “Antologia”, um poema de um morto (exceptuando, como para todas as regras, um poema de José Amaro Dionísio (TV 4) e outro comunicado na TV 11); segue um corpo de poetas de várias gerações, apresentando alguns novos, outros já bastante conhecidos e monstros como Herberto Helder, Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, Alberto Pimenta e alguns esquecidos; um corpo, em cada número, dedicado à tradução onde se podem redescobrir Malcolm Lowry, Dylan Thomas, Djuna Barnes, Hölderlin, Kavafis, Marcial, muitos espanhóis de imensa qualidade e tantos outros; prosa poética, satírica, pessoal, quer de autores portugueses como de outras nacionalidades; mais um corpo ensaístico, que tanto pode versar as artes plásticas (pintura, escultura, etc.), a estética, a poética; terminando com a secção “Efeitos Secundários”, a partir do número 5 da TV (não havendo num ou noutro número), recenseando livros antigos ou novos, música (jazz, a dita “world music”, etc.).
Resta-nos dizer que a TV é uma revista completa para quem gosta de poesia, pelo que envio por este texto as minhas sinceras congratulações ao poeta e editor Manuel de Freitas e a sua companheira e crítica Inês Dias, pelo excelente trabalho com a “Telhados de Vidro” e com a “Averno”, esperando que não fiquemos a meio. Só de tempos a tempos distraindo-nos da morte.


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