quinta-feira, 17 de junho de 2010

uma primeira leitura de "um toldo vermelho"




Agora que o pó já assentou e já nada se ouve falar do assunto, gostaria de deixar algumas ideias sobre o livro de poemas de Joaquim Manuel Magalhães (JMM), Um toldo vermelho – não tenho um pensamento rápido para os debates virtuais, prefiro que as ideias, os argumentos, maturem, que se percam, se esfumem, preservando somente os que resistam ao tempo.

Não sou um crítico literário, não tenho essa formação, nem pretendo ter como ofício a produção de opiniões. Esses lugares não me pertencem. Falo do lado do leitor, a minha morada.

De há uns anos para cá tenho vindo a ler a obra de JMM e as suas rasuras, rescritas. Ora, esse trabalho depurativo tem sido levado a cabo, arrisco dizê-lo, desde o seu primeiro poema. A sua pública oposição, particularmente por amor às suas obras, à escrita de Herberto Helder e de Ruy Belo conduziu-o à criação de uma poesia clara, realista e de certo modo simples – embora não tanto como a de Eugénio de Andrade. A sua influência, quer como poeta, quer como crítico, teve um efeito óbvio na poesia surgida nos anos 90 em diante. Todavia, é forçoso sublinhar que JMM sempre procurou trilhar um caminho singular – como todo e qualquer poeta, obviamente – mas que, atento, como leitor/crítico e levado pela sua profissão de professor de literatura, a toda a poesia e buscando nenhum herdeiro, sempre se guiou por uma certa solidão patente nos seus versos. Ou seja, o livro tão aguardado e anunciado, que seguiria Alta noite em alta fraga, teria de ser uma obra isolada, só, única, órfã, sem qualquer relação com as que lhe antecederam – como cada obra deveria ser.

Perante todas as definições do que é a Poesia, aquela que constante e incessantemente me ocorre é a de Acontecimento. Um poema, um verdadeiro poema terá, deverá ter, o mesmo efeito que um terramoto, um incêndio, um pirâmide, um passo que muda por completo a vida de uma pessoa. Ora, um Acontecimento vê-se continuamente preso na densa trama que dista a expressão e a representação, o ideal e o acidente, quero dizer, a representação alude a uma relação extrínseca de semelhança ou similitude com um objecto, enquanto o seu carácter interno refere uma expressão que não consegue representar; o poema descobre-se nessa aporia. O Acontecimento é neutro, impessoal, mas sendo um efeito incorporal (como viam os estóicos) que passa pela linguagem, sujeita-se a uma apropriação que o diz de modo diferente, despotencia-o, fractura-o, ou seja, o Acontecimento nunca poderá ser dito plenamente do lado da designação, da manifestação ou da significação, mas somente pela expressão, de modo a que o Acontecimento/Poesia apresente o seu verdadeiro rosto, como neutro, completamente indiferente ao universal e ao singular, ao geral e ao particular e ao pessoal e ao impessoal. Os estóicos referiam a adivinhação como processo de apreensão do Acontecimento que, de acordo com Victor Goldschmitt, oscilava entre dois pólos: uma vontade de participar numa visão divina que reúne a profundidade de todas as causas físicas entre si na unidade de um presente cósmico, e aí encontrar a adivinhação de um acontecimento resultante dessa união (causas e unidade), por um lado e por outro, querer o acontecimento, qualquer que ele seja, sem recorrer à interpretação, mas fazendo uso das representações que a efectuação do acontecimento dá. (Vd. Deleuze, Lógica do Sentido, Ed. Perspectiva, 1974: 146-147). Mas como os estóicos afirmavam, não pode haver efectuação do Acontecimento sem a sua contra-efectuação, querer alguma coisa no que acontece.

A experiência, que a colocamos do lado do Acontecimento, partilha igualmente com este a impossibilidade de ser dita plenamente, enquanto se vê simultaneamente mergulhada no desejo, na vontade de se dizer – à semelhança da paixão, do devir-literatura presente no testemunho e explicitado por Derrida no seu livro, Morada. O poema remete sempre para uma experiência, para um Acontecimento; é, ele próprio, uma experiência, um acontecimento. Penso assim que, sendo Um toldo vermelho, como afirma JMM, a sua obra poética que “exclui e substitui toda a anterior”, todo o trabalho de escrita, toda esta linguagem quase abstrusa, árida, difícil, de problemática leitura obrigando o leitor a um árduo trabalho de decifração, a demorar-se no poema, será nada menos que a aproximação à linguagem do Acontecimento. Essa dificuldade devém de que a preensão do Acontecimento é um movimento que vai do público ao privado, da objectividade para a subjectividade. O que se procura, então, pela escrita do Acontecimento é a sua permanência como singularidade. Para me explicar melhor recorro ao exemplo exposto por Deleuze em Le Pli: “A grande pirâmide significa duas coisas, uma passagem da Natureza ou um fluxo, que perde e ganha moléculas a cada momento, mas também um objecto eterno que permanece o mesmo ao longo dos momentos” (p. 108. Tradução nossa). Ou seja, a grande pirâmide seria aqui o conjunto de todos os poemas de JMM e as tais moléculas, que se ganham e se perdem, os poemas na sua característica singular. O poeta construiu uma permanência, a experiência que consubstanciava cada poema permanece; contudo, JMM trabalha sobre as moléculas, por assim dizer, de modo a relevar a neutralidade do Acontecimento.

Volto, para terminar, a um verso perdido, excluído e substituído, de JMM: “a decifração da vida passa por um corpo”. Não será isto a proposta de JMM? Se os poemas são as experiências do homem JMM, as suas experiências de vida (Erlebnisse) expressas e contra-efectuadas pela linguagem que lhe pertence, o que temos em mão será, pois, a sua vida a ser decifrada nesse corpo escrito, parte do mistério – que toda a vida e corpo são – que é o homem JMM. Não há acessos fáceis à poesia de uma vida.

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