Portimão, 1 de Junho de 2010
Mãe,
o olho tem uma vida estranha. Repetindo os caminhos dos passos pela calçada, reduz-se à distância de pé a pé, deserto seco de nenhuma lágrima, rosa de sal. Pela esteira de fora, eu, o forasteiro, mãe, deixo o rio, o mar afogar o horizonte. Estes olhos cor da capital, de néones, que tanto cercaram os teus gestos pela casa, enquanto o corpo infantil se fazia maior que o útero da família – a cama, o quarto, a sala, a cozinha –, partiram já. À menina dos olhos estendi dois girassóis da planície, colhi duas gerbérias perdidas no abandono dos montes do além Tejo. Para que corresse, mãe, a menina e as suas flores, dei-lhe a Serra e o Mar como morada.
Abre-me os olhos o sol, os seus dedos tocam-me por entre os estores. Atravesso a janela e no terraço sempre a música da manhã do mundo, pardais, melros, gaivotas no alto céu com o seu estranho ladrar de cão de marinheiros. As nuvens, pela sinistra, lá para Monchique, de alambiques, medronho, cadeiras cruzadas – não é sentado numa que te escrevo, mãe. O lugar do mar, antes da vista, é pelo nariz e pelo ouvido, nem todos os carros desta cidade mo fariam calar.
O meu dia-a-dia, mãe, mergulha na calma que incessantemente buscava e a tua cidade não me permitia. Andarilho pelas tradições, perco-me pelas ruas, caio nos pormenores, descubro cantos de sombra para as minhas leituras e escrevo (talvez um dia, mãe, te orgulhes deste poeta menor e sem qualidades, tenho um ouriço junto ao coração para te dar).
Debaixo desta noite de alfinetes recomeço uma nova vida, a dois, no sul da língua que me deste. Aqui canta-se, a língua enrola-se por influência do fim da terra e o rebate das ondas nas suas costas. Terra sanguínea de um fado que desconhecia, mãe. Ao longe o comboio na linha parte. Eu fico junto aos espantalhos das salinas, com eles vejo homens e mulheres, na maré-baixa do Arade, à cata de berbigão. A esteva resinosa e florida estrela o verde que rodeia. Por vezes, percorro a cársica espinha desta costa; eu e ela, mãe, caminhamos ao longo desta história, lá para os lados do Vau até Alvor. Acho que encontrámos a nossa casa, mãe, mas como um rosto se desfigura.
O Tempo, como tu deverás saber pelos teus cabelos de calendário, tem o passo do esquecimento e os homens, como animais de memória que são, procuram colocá-lo em eixos que lhe não são naturais. Já nenhum cavalo faz sombra no mar. Roubam-me a vista o encavalitar do cimento, o ferro torcido, o fosco vidro de segredos interiores. Mãe, agora que descobri uma casa para a companheira que sempre quis, para o filho que desejamos, para, porque não, largares a urdidura de tapetes e os teus dedos, enfim, encontrem o mar à flor dos pés, forçam-me a que me torne uma figura trágica: Filoctetes coxeando pelas ruas esburacadas, Édipo estendendo a mão para que o guiem junto ao porto, Ulisses vadiando por entre cidades-Torre de Babel; mãe, como se desfigura um rosto.
Contudo, mãe, nesse rosto desfigurado, arranhado até aos céus, há as rugas de sorrisos que permanecem, outras, de tantos anos, que só um olhar de um estrangeiro como eu, como tu me fizeste, ainda se deslumbra. O meu passo, mãe, felizmente, ainda me não detém o olhar. Voga ainda entre o horizonte onde sempre estou e esse aí para lá da minha morte.
Por isso, mãe, não te preocupes, nem todo o mar são lágrimas de tristeza, os marinheiros da vida também se criam à beira-mar. Um dia terás de vir ver o teu neto, tocar-lhe a mão, aqui, em Portimão.
Beijos de saudades,
O teu filho,
Sem comentários:
Enviar um comentário