sexta-feira, 21 de maio de 2010

oscar wilde




título
- De profundis, Carta a Lord Douglas escrita na prisão de Reading
editora - Estúdios cor

Quando Foucault e Deleuze foram incumbidos de preparar as obras completas de Nietzsche, colocaram-se a seguinte questão: o que é uma obra completa de um autor, o que deve ser apresentado aos leitores? Só – naquele caso específico – os textos ditos filosóficos, esses mais os fragmentos espalhados que coligidos dariam mais um livro, ou tudo? E o que significa esse tudo de um autor? Notas esparsas, cartas, listas de compras? É certo que os diários já têm lugar assentido no campo da literatura e muitos escritores redigem diários tendo em vista a sua edição póstuma, havendo um trabalho sobre a linguagem semelhante ao tratamento que ocorre na poesia ou na prosa romanceada.

Mas o que dizer das cartas? O que é uma carta? Uma carta talvez não seja mais do que a forma mais pessoal de expor a nossa vida, apresentar o coração nas mãos quando há muito sufoca na garganta, pô-lo, assim, a nu – como dizia Baudelaire – sem máscaras, sem floreados, seco, no seu ponto de cristalização máxima fora de toda a expressão cuidada, correndo o risco que Pessoa apontou, ou seja, se fôr de amor o mais certo é ser ridícula e muito esdrúxula – mas será assim para quem a carta não diz respeito; no amor, como em muitas outras coisas, o ridículo está nos olhos de quem está fora, o ridículo é somente um reflexo de quem está a mais. Uma carta, uma verdadeira carta, é mais dura que um poema, procura ir directo ao outro, endereça-se, no mais das vezes, àquele ou àquela. A sua interpretação pretende-se directa e, contudo, há um código que só dois partilham para decifrar as memórias divergentes. Uma carta editada não é uma carta, é um roubo declarado, tantas vezes teatro mórbido de um morto em praça pública sem meios de defesa. Pelo meu lado, tenho um certo pudor em ler em público cartas ou diários; há uma dimensão do segredo que deveria ser guardado e preservado e a sua leitura deveria assemelhar-se ao gesto da criança curiosa no quarto dos pais ou dos avós, numa ausência próxima, periclitante, a qualquer momento descoberto. Talvez, ler um diário ou uma carta não seja mais do que um modo de prolongar, quando adultos, o instante de captura do sexo dos pais: o que se passa ali naquele quarto, naquelas páginas, que sons são aqueles que de lá saem, que palavras estão a ser murmuradas, que segredo me é negado?

Esta carta, conhecida no mundo como “De profundis”, nunca deveria ter sido editada, se a pessoa a quem foi responsabilizada a entrega e a protecção (havia duas cópias da carta – o que não deixa de ser estranho) não tivesse gorado o desejo do autor, como anos mais tarde Max Brod fará a Franz Kafka – pelo mesmo, agradecemos aos traidores. Quem é o seu autor e o que é esta carta?

Oscar Wilde (1854-1900), conjuntamente com, por exemplo, W.B Yeats, foi um dos maiores escritores irlandeses do fim do século xix. Nascido no seio de uma família protestante, estudou na Portora Royal School e no célebre Trinity College de Dublin (onde também Jonathan Swift e Samuel Beckett estudaram), ganhando fama de grande helenista e latinista. Daí, seguiu para a Magdalene College em Oxford com uma bolsa, onde ganha o prémio, entre muitos na sua carreira, “Newdigate” com o poema “Ravenna”. Segue para Londres imiscuindo-se na vida cultural da grande capital britânica e tomando, desde então, as atitudes daquilo que irá professar, através de conferências e palestras nos Estados Unidos, como o estetismo ou dandismo, ou seja, elevar o belo ao maior estatuto ético-estético como confronto à sociedade industrial e o capitalismo crescente. Faz diversas viagens pela Europa e trava amizade com figuras importantes do mundo literário parisiense. Voltando a Inglaterra, casa-se com Constance Lloyd, filha de um rico advogado de Dublin, muda-se para Chelsea e tem dois filhos, Cyril e Vyvyan. A sua obra espraia-se por múltiplos géneros, poesia, poemas em prosa, contos (fantásticos, misteriosos e cómicos para adultos e crianças), romance (um único e fenomenal, “O retrato de Dorian Gray”), ensaios (o estranhíssimo “Retrato do sr. W.H”, um próximo do anarquismo, outro sobre a mentira e o “Intenções”) e teatro, talvez o que mais se conhece, como “O leque de Lady Windermere”, “Salomé”, “Uma mulher sem importância”, “Um marido ideal”, “A importância de ser sincero (ou Ernesto como já se viu traduzido – Wilde joga com a fonética entre Earnest, significando sério, sincero, e Ernest, nome da personagem).

Não sei se pelo dandismo ou por uma leitura levada à carne do “Banquete” de Platão, ou simplesmente por ser bissexual, Oscar Wilde terá uma relação intensa com um jovem alcunhado pelo próprio escritor de Bosie, que o levará à ruína e, pela mão do pai do jovem, à prisão e a dois anos de trabalhos pesados em Reading. Já se sabe, portanto, que esse jovem é a pessoa a quem a carta é endereçada, Lord Alfred Douglas.

Não falarei de todo o movimento difamatório e defensivo, as discussões, as provas e contra-provas, os argumentos a favor e contra ou, até, da vida íntima do escritor irlandês; sobre isso há teses que bastam e em circulação, há mesmo filmes dedicados somente ao caso. O melhor, como leitor, como amante dos livros, é ler a carta. Íntima, dura, ferida, cansada. Oscar Wilde faz o balanço da sua vida, aponta os seus erros, as suas falhas, confessa o seu coração amargurado. É um trabalho quiçá mais rude, extenuante que esses dois anos abjectos da prisão, porque nesses dois anos está toda a sua vida a pesar-lhe, a ser lida, escalpelizada, autopsiada, repetida mentalmente a cada instante e repetida pelas palavras. A carta torna-se, por momentos, uma pesquisa espiritual e um pensamento sobre a Arte, de onde Oscar Wilde deseja sair um novo homem. Da prisão sai um homem desfigurado que, para além da carta e a “Balada de Gaol Reading”, nada mais escreverá (ou muito pouco), morrendo na maior pobreza de meningite em Paris, já não Oscar Wilde mas Sebastian Melmoth.

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