terça-feira, 25 de maio de 2010

Emma Santos




A solidão de ser sem o homem amado.
Paradoxo.
Amo-te porque me violaste aos dezassete anos.
Amo o meu violador.
Não, meeting na Mutualité sobre a violação, todas sentadas no chão e discutir fumar rir cantar.
Conclusão.
O marido é cúmplice do violador.
Todos os homens são violadores.

A sociedade de mulheres sufoca-me e por isso amo as minhas pequenas amigas.

Onde fugir?
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Quando alguém se encontra entre nós, diz-se que eram “amores de donzela”, que os amámos demais.

Uma mulher não pode mais amar.

Como ser mulher?

– Dou-te dez mil…

Recordação do hospital:

Ela arrasta-se para um bar segue três homens de carro e deixa-se violar indiferentemente. No seu quarto, ela engole uma garrafa de NOZINAN e descobre-se no hospital.
A “sala de irrecuperáveis” de Saint-Anne. Vinte camas apertadas, as W.-C. abertas num canto, uma grande banheira de cobre que a enfermeira enche à caçarola.
Cada doente nu aguarda o banho obrigatório. A vigilante com o seu molho de chaves preso à cintura. O minúsculo pátio com duas árvores e um banco.
Estive lá.

É o entristecimento, a busca do enternecimento. Encontro uma rapariga do hospital, trinta anos, dura e seca, cabelos escassos, que me confia o seu desânimo.

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– Não faço amor há dez anos… Aos vinte e quatro anos, eu desejava todos os homens… Eu queria deitar-me com todos os homens mesmo o açougueiro, agora tranquei-me num quarto para me punir.

– Mas o desejo existe, não está posto num só homem, é uma curiosidade que existe numa idade em que o desejo sexual se desperta…

– O meu psiquiatra disse-me que não era normal e trancou-me no hospital.

A noite, arrastamo-nos com os sinos, velhos nos cocktails da avenida Matignon, alguns cadáveres e os ossos à beira da cova. A pintura com cem anos de atraso. Um empregado de branco serve o champanhe.
Champanhe atrás de champanhe, a minha cabeça incha de solidão.
Giro e caminho pela avenida. Todo o meu ser é um autómato que avança em direcção ao silêncio da minha cama.

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Depois de três anos não fazemos mais amor.
Tu queres conversar (tu também?).
Tu vens falar duas vezes por semana com o psiquiatra.
Escapas enquanto me afloras os lábios.
Sonho com um beijo quente.
Estou farta da palavra, da tua palavra, das tuas explicações sobre a nossa separação.
Assim encontramo-nos todos os dias. (Sou capaz de te rastrear pela Paris e mesmo pelo mundo inteiro se for necessário um dia.)

– Admiro-te, tornaste-te um escritor…

– Uma escritora, desculpa…

Eu uivo meu corpo meu corpo que rejeitas, meu sangue, minha carne e minhas lágrimas.

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Volto para o hospital, só trancada presa num quarto, recorro às palavras.
Peço o seu auxílio.
O meu corpo flutua sob os medicamentos.
Não existo mais.
Pego no lápis e escrevo.

Digo-te que sou uma vagina, um buraco.
Sou feita de baba e de sangue.

No meu sexo, posso carregar a vida.

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E sempre drogada Vou uivar num meeting, entre duas estadias no hospital, que sou a mulher livre.

As minhas prisões, as minhas prisões interiores.

Compreende que tenho cabelos na cabeça que os lavo quando tenho um encontro contigo.

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Telefono para a casa da tua amante.

A tua nova amante é professora. Telefono-lhe durante as suas horas de serviço.
Quando eu era professora, tu ias vê-la quando eu estava na escola.

Os meus seios colam-se ao nylon do meu sutiã e não ouço mais todas as palavras que cospes ao telefone.

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Deus, já os primeiros espargos da primavera.

O meu coração fere-se.

Gostava de cozinhar em vez de escrever.

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