Título: Sexta-feira ou os limbos do Pacífico
Autor: Michel Tournier
Editora: Relógio d’Água
Não penso que os anos, a idade, tenham alguma coisa a ver. Aliás, dou, normalmente, as boas vindas ao novo dia repleto de repetições do dia passado e procuro retirar o gozo de cada gesto habitual, o que não é difícil se a isso nos dedicarmos atenta e atenciosamente. Conheço também de cor cada pêlo branco no meu rosto, a história que o embranqueceu, mas a idade não me atormenta, não me rouba o sono e cheguei mesmo um dia a escrever num caderno: “não há experiência da juventude sem uma certa ruína do corpo” e, de seguida, “quantas mais rugas e cãs mais humano sou”; e, talvez, isto já tenha qualquer coisa a ver.
De uma coisa estou certo, o meu trabalho e as leituras que ele implica têm-me aberto uma ferida de longa data e à qual, agora, obviamente, me dedico com maior seriedade do que quando se formou, ou seja, aí por volta dos quinze anos da revolta em diante. A estrutura das minhas leituras permaneceu; a maior diferença está no esforço de tentar pensar a questão. Lembro-me, por exemplo, de uma discussão constante com um amigo, o Rui Durão – especialmente com ele debati esse assunto – e que mantenho a posição da diatribe, que, em traços gerais, se assume nestes termos: o problema do mundo não é político, mas bem o que significa ser humano (na altura dizia ser do espírito). Portanto, para quem queira saber, continuo preso ao mesmo problema, passado tantos anos, mas debruço-me em questões laterais, isto é, o Corpo (que no meu pensamento vai para além do invólucro da carne para a alma e espírito, não faço separações) como conceito filosófico e a sua presença na arte, como disciplina que questiona o homem. Claro, é uma posição muito debatível. Todavia, encontrei neste belo romance, “Sexta-feira ou os limbos do Pacífico” de Michel Tournier, uma par neste caminho.
Romancista francês ainda vivo, nascido em 1924, licenciado em filosofia (foi colega de tantos filósofos como, por exemplo, Gilles Deleuze, e, confesso, foi através deste que cheguei a Tournier) tendo leccionado nos liceus, como era costume na época, passando a exercer a função de repórter para a Radio France e jornais como o Le Figaro e o Le Monde, ou realizando traduções para a casa editora Plon, dedicou-se à escrita em prosa a partir dos anos sessenta. O seu primeiro livro é este que ora se apresenta, de 1967, o qual, em 1971, terá um tratamento de modo a facilitar a leitura da juventude, tomando o título de “Sexta-feira ou a vida selvagem”, chegando mesmo a ser um dos livros de leitura obrigatória no liceu. Mas, o que tem este romance para que me alie a ele, ou o junte aos argumentos do meu problema?
Como decerto se lembrarão, Sexta-feira é o nome da personagem selvagem do romance do séc. xviii de Daniel Defoe “Robinson Crusoe”. Ora, este romance aqui retoma a história, é uma revisitação e é, do princípio ao fim, outra coisa, outra história. Passada a narrativa, não como na original, nesse século das revoltas francesa e norte-americana, encontramos o mesmo náufrago Robinson, só, numa ilha do Pacífico. Aí, lutando contra a loucura que se aproxima de toda a solidão, volta-se e agarra-se ao seu velho mundo, regrado, legislado, habitado pelo hábito. A ordem vem pelo controlo do Tempo e forçando o seu tempo – o tempo do trabalho, da religião, do homem ocidental, por assim dizer – sobre o tempo natural da Ilha que, uma vez nomeada “Desolação” (“resumindo com o improvisado baptismo a sua própria situação” p. 21), se vê renascida como “Speranza”. Arrancada a custo das sombras informes, a nova ordem abre o horizonte de promessas. A Ilha tem um novo rosto, o do homem, o de Robinson. E não vai ser a chegada de um mestiço, meio africano meio índio sul-americano, que derrubará a sua ordem. Tal como a Ilha foi humanizada, foi aculturada, com plantações, domesticada, com a criação de gado caprino, também Sexta-feira terá de adequar o seu rosto ao de Robinson.
Mas este não é um livro do poderio do homem branco sobre todos os outros, do bem e do belo dado ao mundo pelos europeus, da cultura civilizada face à criança primitiva. Bem pelo contrário, é um tratado de ética através da arte do romance, o encontro da ética e da estética no corpo, na vida desse homem. Uma ética que parte não de regras transcendentes, mas do corpo a corpo, na presença e em presença do outro, qualquer que ele seja, através da vivência com o outro; não há regras nem leis de um livro já escrito com as promessas de um futuro longínquo, mas diálogo (com ou sem palavras), a existência lado a lado para um futuro já presente e passado a fazer em conjunto e “eu próprio só existo quando me evado de mim para outrem” (p. 160). O meu rosto, sendo todos, é nenhum. Essa é a lição de Robinson, deste Robinson. Preso às insistências tidas como maiores, leis de intransigência, preconceitos de todos os géneros, só quando se liberta de todos os aguilhões e se dá a viver, lado a lado, abrindo-se à evasão do outro nele enquanto ele se dirige a Sexta-feira, ele nasce, ele existe, ele é com o mundo. A ética começa com um toque, tocar e ser tocado, na proximidade e na distância, mesmo sendo o outro um morto. E ser humano talvez comece por aí. Não se nasce humano, vamos sendo humanos; e o toque é o seu apelo.
Sem comentários:
Enviar um comentário