segunda-feira, 15 de março de 2010

cold souls






nunca antes tinha feito isto - escrever sobre um filme - mas aqui vai. vi, acabei de ver ainda há pouco - em vez de estar a trabalhar - o filme cold souls, escrito e realizado por sophie barthes e com os actores paul giamatti, emily watson, entre outros. é uma comédia dramática independente que, penso, nem sequer chegou aos cinemas portugueses. se o argumento tivesse sido escrito pelo charlie kaufman, não me estranharia nada, só que não é e parece que ele abriu uma nova corrente no cinema americano. quero apresentar o filme, que levanta um problema teo-filosófico, embora, por não ser a minha área de investigação (só há muito pouco tempo dou os meus primeiros passos na filosofia, e a religião vem pela via cultural), não o possa aprofundar devidamente.
a sinopse do filme poderá ser esta: paul giamatti faz de paul giamatti (como o malkovich fez de malkovich), isto é, tenta apresentar-se como ele próprio, dar uma imagem que tem de si - nunca podendo nós dizer ao certo se é verdade ou ficção dentro da ficção; obviamente, trata-se sempre da apresentação de uma auto-ficção guiada por um argumento. encontrando-se prestes a estrear a peça tio vânia de tchekhov (o ambiente russo que tem o filme mais o título lembram logo a última obra de gogol, almas mortas), sente um  peso enorme que o impede de representar convenientemente o papel; então, o seu encenador fala-lhe de uma nova empresa que retira e guarda as almas das pessoas. num momento de tédio, de dúvida, giamatti lê um artigo na new yorker, recomendado pelo encenador de modo a certificar a verdade, e conduzido pela curiosidade giamatti acaba por se dirigir à empresa e retira a sua alma.
pois, os problemas surgem, então, a partir desse momento (aliás, o filme começa mesmo com uma epígrafe de descartes sobre a alma sobre a sua localização): o que é a alma? que imagem temos dela? o que é que pensamos que ela é? que ligação existe ou é estabelecida entre a alma e o corpo? do que é que ela se constitui? a alma é de cada um? única? poderemos trocar de alma?
ora, no filme, nunca uma alma é retirada completamente; pelo menos 5% dela permanece no corpo afim de o animar. aí encontramos uma origem etimológica da palavra, alma é anima, daí sermos corpos animados, dotados de animação, de alma - disse aristóteles que a diferença entre o vivo e o morto era exactamente a animação do corpo; o que poderá levar a discussão ao argumento da prescindibilidade do corpo, o corpo como mero objecto, vaso, recipiente, levando a alma a tópica única, da qual, depois, se estabelece a diferença entre o homem e o animal, sendo ambos animados. se a alma é mais do que animação, se o corpo, com os 5% de alma se mantém animado, o que diferenciaria giamatti de um qualquer animal? e qual o papel do cérebro? parece, no filme, que mesmo essa percentagem permite, todavia muito reduzida, todo o tipo de actividade, quer psicológica, emotiva, estética, mas já não o cuidado ético em relação ao outro - cessa o crivo do cuidado, da atenção, do bom senso (emily watson, enquanto mulher de paul giamatti, refere mesmo essa desatanção, por assim dizer, até mesmo o aspecto estranho à vista e ao toque, diz ela que ele se parece com um lagarto, frio, seco, como que escamoso). sem alma há uma certa apatia.
a alma assemelha-se, igualmente, a uma espécie de reservatório de memórias, ou a essência própria da vida (humana), aquilo que permite a relação amorosa, que permite a própria emoção, o amor. esses 5% não serão mais do que um rasto de onde - afirma o médico citando heraclito - pode surgir ou nascer uma nova alma, um rasto, retalho de pontas soltas e frágeis de onde se poderá procurar ligar às pontas soltas que vêm dos outros, nos seus gestos, nas suas palavras, de onde se estabelecem os laços.
obviamente, dado como empresa, mergulhamos também no seio capitalismo e dos seus mercados visíveis e obscuros, com a exploração de almas e mulas que transaccionam as mesmas, havendo uma que ajuda giamatti a recuperar a sua própria alma que se encontrava no corpo de uma actriz russa de telenovelas e esposa de um chefe de mafia (uma vez mais, obviamente). o desejo dela, da actriz, era obter a alma de um sean penn, um al pacino, isto é, um dos grandes, mas teve de se contentar, sem o saber, com a do pequeno paul giamatti.
entretanto, várias coisas se podem ainda dizer: a mula, que tivera de retirar a sua alma para poder transportar as outras, aos poucos e poucos reganha uma nova alma de cada 5% perdido; a sua alma torna-se como que monstruosa, verdadeira manta de retalhos da vida de outros que relembra, a sua vida já não existe senão como vida de todos os que passaram pelo seu corpo - ela é legião, um-qualquer-particular, um ninguém populado, nem sequer esquizofrénica, o que implicaria uma cesura na sua própria alma, mas outra coisa qualquer mantendo uma mesma personalidade. a pergunta não é, assim, quem é ela, mas bem o que é ela.
também - um momento especialmente bonito do filme - para poder, enfim, representar convenientemente a peça, paul giamatti aluga uma alma de um poeta russo - uma mulher, da qual temos breves vislumbres da sua vida e do momento em que vende a sua alma e que por fim comete suicídio (já falei demais) - mas, diz ele, não pode continuar com aquela alma dentro de si, sente-se doente, não porque, à semelhança dos órgãos, esteja a rejeitar a alma, mas porque sente que aquela alma necessita uma vida maior do que a sua própria.
bom, o filme, nem eu pelo meu lado, pretende responder a qualquer dúvida filosófico e religiosa. parece-me mais um ensaio a partir exactamente de descartes, que para mim já me deu para escrever um pouco e pensar na alma (exista ou não).
se puderem, vejam que não se arrependerão.

11 comentários:

Anónimo disse...

Filosófica (ao estilo descarteano, entre muitos outros filósofos) ou religiosamente, como dizes, isso que designas chama-se alma.
A palavra correspondente, noutro tipo de gíria (psicológica, psiquiátrica, sociológica ou outras), é "personalidade" ou "carácter". concordas?

esse filme tiraste-o da internet?

fernando machado silva disse...

sim, talvez essas palavras se adequem, embora, quer a personalidade, quer o carácter, parece-me, sejam passíveis de mudança, de evolução, sujeitas às diferenças, enquanto a alma sempre foi pensada como estática, já formada. talvez essa diferenciação da personalidade e/ou do carácter esteja já pressuposta na/pela alma, como o melhor dos mundos possíveis de leibniz, a alma de cada um, como mónada do mesmo, seria a melhor das almas possíveis.

por isso, não concordo completamente. diria antes que a personalidade ou o carácter são modos de expressão da alma e não ela mesma. há toda a questão dos vinte e um grama que complicam um bocado, mesmo para um agnóstico. eu não sei se existe ou não alma; quando, por vezes, me cercam dúvidas, penso mais - sem as tretas da new age e outras religiões ou místicas - que partilho uma mesma energia com tudo - a nível atómico e sub-atómico e mais ainda (já não sei quais são as partículas que agora a física e a química tratam) somos todos a mesma coisa, ou não?

e tu concordas com alguma destas coisas que acabei de argumentar?

quanto ao filme... emprestaram-me, mas foi tirado da net, por isso acho que o encontras.

n.b.- obrigado pelo comentário, embora podias deixar um nome

Anónimo disse...

Se concordo com a pesonalidade/carácter fazerem parte da alma (que os manifesta)? não concordo nem discordo, é uma maneira de ver a coisa, que compreendo.

se concordo com sermos todos a mesma coisa? não sei, há muita coisa que agora não sei.

dado que não nos conhecemos, para quê um nome? pela curiosidade em saberes o que me chamam? ou referias-te a um nome qualquer que eu pudesse pôr aqui de modo a teres alguma ideia da minha imaginação para um nome (aqui ou ali)?

obrigada pela resposta ao que comentei.

fernando machado silva disse...

um nome é um nome, nunca definirá o que é a pessoa que o tem até sermos dignos dele, do nome qualquer (próprio ou imaginado), mas peço-te sinceras desculpas se te ofendi de alguma maneira. ao pedir um nome não te quero julgar - mesmo que isso seja impossível, há sempre um julgamento que age - a imaginação, mas exercitar a minha para ver um rosto (e nada disto tem a ver com qualquer processo de engate ou coisa parecida). anónimos somos todos, sempre somos, mas ter um rosto é uma dignidade que todos deveriamos ter.

desculpa de qualquer forma e uma vez mais obrigado pelo comentário, espero que faças mais, malgrado isto, esta confusão.

(eu só não dou demasiada importância à psicologia)

Anónimo disse...

Não achei isto nada confuso, compreendi tudo e estava só a questionar-te acerca do porquê de quereres um nome, também me passou pela cabeça quereres visualizar alguém mas não consegui expressá-lo.
não me ofendeste em nada e não vejo, no que escreveste, como poderias ofender.

Anónimo disse...

Não achei isto nada confuso e percebi tudo, estava só a questionar-te acerca do porquê de quereres um nome, também me passou pela cabeça quereres visualizar alguém mas não consegui expressá-lo.
não me ofendeste em nada e não vejo, no que escreveste, como poderias ofender.

Anónimo disse...

ups, duplicação de comentários com a diferença - note-se! - do "compreender" e do "perceber". isto quererá dizer alguma coisa?

cristina disse...

"i told you so"

fernando machado silva disse...

tens razão cris, eu tenho mesmo uma tendência para deturpar, complicar e perceber mal as coisas que me dizem... mas já estou a ficar um bocadinho melhor.

percebi/compreendi - diferença e repetição

Anónimo disse...

agora não percebi!

fernando machado silva disse...

caro/a anónimo/a, não te preocupes, o meu comentário era referente a uma longa e antiga conversa com a cris (a minha companheira).

o diferença e repetição (que é a tese de doutoramento de deleuze), esse sim, refere-se ao teu repetido e diferente comentário (percebi/compreendi)

os teus comentários serão sempre bem vindos noutros post espero que continues).