segunda-feira, 20 de abril de 2009

morte suspensa





AUTOR: Maurice Blanchot
TÍTULO: Morte Suspensa
EDITORA: Edições 70



Maurice Blanchot (1907-2003), teórico e crítico literário, escritor, pensador. Um dos maiores nomes da cultura francesa do século passado, influenciando numerosos filósofos (Derrida, Deleuze, Foucault, entre outros), amigo próximo de tantos outros (Georges Bataille, Emmanuel Lévinas, Pierre Klossowski), personalidade desconfiada, resguardada dos olhares dos outros (contam-se pelos dedos as fotografias conhecidas e as entrevistas dadas), deixou-nos uma obra imensa, densa, difícil e ainda, entre nós, bastante desconhecida, como tantas outras de tantos escritores e filósofos e poetas – é péssima a nossa tradição de tradução e, infelizmente, mesmo entre os esforços de algumas das nossas editoras, não mudará nunca, uma vez que essa tradição alia-se, obviamente, a outra, à tradição da leitura, que não é de agora, senão não falaríamos de tradição.
A ele devem-se leituras e análises profundas, perturbadoras e inevitáveis para quem quer saber mais sobre o que é a Literatura – essa obra infinita, lugar do Neutro, espaço do devir e de um certo tipo de experiência. Mas não falarei da sua obra crítica e filosófica; não está em mim essa probidade, uma vez que apenas tenho comigo três dos seus livros editados em Portugal – há quatro, até hoje senão me engano – e os dois que li por inteiro são novelas, entre a ficção e a autobiografia – tendo um, “O Instante da minha Morte” dado azo a um belo ensaio de Derrida, “Morada”, pela editora Vendaval – e o outro este, “A Morte Suspensa”, muito difícil já de se arranjar – encontrei-o numa pequena feira do livro na estação de metro da Rotunda quando procurava um livro para a minha irmã (que mania esta de impingir livros aos outros).
Os livros que mais me tocam, seja qual for a sua dimensão, demoram nas minhas mãos e permanecem de uma forma angustiante. Por um lado, põem-me num outro tempo, escorrendo lentamente, dão-me pequenos desconfortos, sou constantemente obrigado a mexer, a mexer-me, a cruzar e descruzar a perna, a coçar-me, a levantar-me, a andar; e por outro, sabendo que são quase infinitos os livros que nunca lerei, ao mesmo tempo que me dá prazer o livro em mão, irrita-me durar tanto tempo atrasando os outros que ainda vêm, que virão antes da minha morte, podendo mesmo esse que tenho na mão ser o último. Este foi um desses. Um pequeno livro de três horas em três dias.
Dividida em duas partes, esta novela, partida em dois tempos, rebate os temas de antanho (que bela palavra antiga que me veio à mão), sempre presentes, visíveis ou invisíveis, mas sempre presentes a todos, o amor e a morte, reunindo-se à volta de alguns substantivos, a “espera”, o “atraso”, a “suspensão”. Somos obrigados a falar sobre isso, sobre a morte, sobre o amor, com palavras que os trazem ao nosso rosto, ao nosso corpo, às nossas bocas, para os fazer presentes e adiá-los e nesse jogo infinito fazê-los inimigos e amigos da nossa vida, estranhos e conhecidos. Falar sobre amor e morte é fazê-los presentes e adiá-los, atrasar as suas vindas, deixá-los em espera, suspendê-los, ou procurar suspendê-los, suspender a sua experiência inefável. Amor e Morte não são ditos, não se deviam dizer, não são essas as palavras que as dizem, tal como para os hebreus o nome Dele é impronunciável, inaudito, inefável. Falar de Amor e Morte é falar de outra coisa que não Amor e Morte. O Amor e a Morte nunca estão em nós, estão nos outros, sempre nos outros, conhecendo-os pelos outros, encarnando-os nos outros. O outro é que morre e nós seguimo-lo na morte, só falamos pela morte do outro e só podemos falar pelo amor através do outro, pelo amor ao outro que nos dá a experiência de “amor”, tal como nesse pequeno momento da primeira parte da novela em que a mulher, depois de ter perguntado à sua enfermeira se ela alguma vez viu a morte, à qual a enfermeira lhe responde que já viu mortos, e a mulher diz “Não, a morte!” (p. 26), mas que logo a verá, a morte. E mostra-a, quando já a falecer, no narrador sentado junto à cama, esse homem que também era a sua paixão: ora, aí está a morte, no outro, na paixão do outro.
É um cruel livro, escrito de uma forma simples mas intensa e densa, como já disse quanto ao resto da sua obra, de onde retiro a parte que me toca – que não será a mesma para outro – e me retiro para outro sítio de onde falo dele. Não conto a história, nunca se deve contar a história de cada livro para convencer a lê-lo. Mas podem-se sempre extrair um ou outro pensamento que nos descobre desprevenidos e nos força, pelo seu óbvio, a dizê-lo, a fim de tentar seduzir aquele que nos lê. O que agora cito é tão óbvio que até poderia ser uma ofensa e todavia ecoa tanto em mim que tenho de o escrever: “Esse saber, tão prodigiosamente antigo, pairava sobre mim grasnando uma espécie de fala, sempre a mesma, que equivalia mais ou menos a isto: há um tempo para aprender, um tempo para ignorar, um tempo para compreender, um outro para esquecer” (p. 45).
(Será que alguém me pode escrever uma carta? Uma carta carta, em papel?)

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